Beber excessivamente na adolescência pode comprometer a integridade da substância branca

O consumo excessivo de bebidas alcoólicas na adolescência está associado a rupturas na integridade da substância branca, sugere uma nova pesquisa.

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Em um estudo caso controle com mais de 400 participantes, a associação foi mais pronunciada em adolescentes jovens e no corpo caloso anterior e médio, que tem papel na integração e comunicação inter-hemisférica da rede frontal.

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Os resultados fornecem aos médicos outro motivo para indagar os adolescentes sobre o consumo de álcool, disse o pesquisador Dr. Adolf Pfefferbaum, médico no Center for Health SciencesSRI International e professor emérito da Stanford University School of Medicine, nos Estados Unidos.

No entanto, ao indagar adolescentes sobre o consumo de bebidas alcoólicas, “às vezes é melhor perguntar: ‘O quanto de álcool você bebe?’ em vez de perguntar se eles bebem”, disse o Dr. Adolf ao Medscape. Eles podem ser mais propensos a responder à primeira pergunta honestamente.

Também é importante que os médicos digam, sem julgamentos, para os adolescentes que existem evidências de que “beber muito faz mal para o cérebro”, ele acrescentou.

Os resultados foram publicados on-line em 30 de dezembro no periódico JAMA Psychiatry.

Anisotropia fracionada

Foto: Free-Photo

Foto: Free-Photo para Pixabay

A adolescência é um período crítico de maturação fisiológica e social, acompanhada de alterações cerebrais estruturais, funcionais e neuroquímicas significativas, observaram os pesquisadores.

A imagem por tensor de difusão (DTI, sigla do inglês Diffusion Tensor Imaging) produz uma medida chamada anisotropia fracionada, que caracteriza algumas dessas alterações cerebrais ao medir a difusão de moléculas de água no cérebro.

“A anisotropia fracionada é uma medida de integridade do cérebro na substância branca, ou seja, da parte do cérebro que conecta os neurônios uns aos outros”, disse o Dr. Adolf. Ele acrescentou que a anisotropia fracionada diminui em doenças como a esclerose múltipla, indicando “algum tipo de patologia”.

Os sistemas de fibras acometidos incluem o corpo caloso, fascículo longitudinal superior, cápsula interna e externa, tronco cerebral e fibras de projeção cortical. A ruptura desses sistemas neurais pode degradar a transmissão do sinal neural e afetar certas funções cognitivas, possivelmente resultando em aumento da impulsividade, controle inibitório ruim e restrição da capacidade de memória de trabalho, escreveram os pesquisadores.

A anisotropia fracionada segue um padrão em forma de U invertido. “A trajetória natural é aumentar a partir da infância até o meio da adolescência, e, então, ao envelhecer, com cerca de 25 a 30 anos, começa a diminuir. Nossos cérebros estão começando a mostrar alguns sinais de envelhecimento nesse momento”, disse o Dr. Adolf.

A análise atual avaliou 451 adolescentes (228 meninos e 223 meninas) do estudo NCANDA, dos quais os pesquisadores têm quatro anos de dados longitudinais de DTI. Todos tinham entre 12 e 21 anos de idade no início do estudo.

A coorte NCANDA foi recrutada em cinco locais nos EUA. Os participantes foram avaliados anualmente com medidas psicobiológicas, incluindo maturação cerebral. A coorte, que não tem nenhum caso significativo de abuso de substâncias, é equilibrada em termos de sexo e etnia.

Os pesquisadores quantificaram a alteração de desenvolvimento na integridade da substância branca em cada indivíduo através da inclinação da curva de anisotropia fracionada ao longo das consultas. Eles também avaliaram as trajetórias de desenvolvimento associadas ao início do consumo de álcool na adolescência e associações diferenciais com o álcool por idade com tratos de fibras de substância branca regionais específicas.

A equipe de pesquisa quantificou o consumo de álcool em uma escala de um a quatro, com base na pontuação de Cahalan ajustada para jovens. A escala considera quantidade e frequência para classificar os níveis de consumo de bebida alcoólica de acordo com os padrões relatados pelos participantes no ano anterior.

Trajetória alterada

Foto: Free Photos para Pixabay

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Os resultados mostraram que 291 participantes (37,2%) permaneceram em níveis de consumo de álcool baixos ou ausentes (pontuação de Cahalan ajustada para jovens de 0) ao longo dos momentos avaliados e que 160 (20,5%) foram classificados como pessoas que bebem excessivamente por pelo menos duas avaliações consecutivas (pontuação de Cahalan ajustada para jovens > 1).

Dentre aqueles que bebem pouco ou nada, 48,4% eram rapazes (média de idade de 16,5 anos) e 51,2% eram moças (média de idade de 16,5 anos). Cerca de dois terços do grupo (66%) eram de brancos.

Dentre os que bebem excessivamente, 53,8% eram rapazes (média de idade de 20,1 anos) e 46,3% eram moças (média de idade de 20,5 anos). Neste grupo, 88,8% eram de brancos.

Os pesquisadores não analisaram aqueles que bebem moderadamente ou que começaram a beber excessivamente em apenas uma avaliação.

Os resultados também mostraram que aqueles que bebem excessivamente apresentaram redução significativa na anisotropia fracionada em todo o cérebro. As curvas dos 78 participantes classificados como pessoas que bebem excessivamente foram significativamente mais negativas do que as dos 78 que bebem pouco ou nada, com quem foram pareados (média de -0,0013 versus 0,0001; P = 0,008).

“O conceito de curvas é bastante importante aqui, porque a trajetória parece ser a medida mais sensível”, disse o Dr. Adolf. “Provavelmente, o que está acontecendo é que a exposição ao álcool está interferindo a mielinização e o desenvolvimento normais da substância branca dos adolescentes.”

Aqueles que bebem pouco ou nada tiveram medidas de anisotropia fracionada relativamente estáveis em todas as avaliações.

A redução na anisotropia fracionada foi significativamente associada à bebida em excesso. Uma análise de 63 jovens que saíram de “pouco ou nada” para “bebida em excesso” mostrou que antes dessa mudança eles apresentaram um aumento significativo da anisotropia fracionada ao longo das avaliações (intervalo de confiança, IC, de 95% para a curva de 0,0011 a 0,0024; P < 0,001). Além disso, suas curvas correspondentes não foram diferentes às de outros classificados como quem bebe pouco ou nada dentro da mesma variação de idade.

No entanto, a anisotropia fracionada deste grupo declinou significativamente depois de os participantes referirem consumo excessivo de bebidas alcoólicas, resultando em curvas significativamente abaixo de zero (IC 95% da curva de -0,0036 a -0,0014; P < 0,001) e que foram menores do que as dos participantes que bebem pouco ou nada com a mesma variação de idade.

Os achados desta singular avalição de antes e depois “nos colocam um passo mais próximos da causalidade”, e ilustram que beber excessivamente na adolescência afeta a integridade da substância branca, disse o Dr. Adolf.

Marcadores potenciais

Nenhuma das medidas da curva se correlacionou com o número de avaliações ou com o uso de tabaco ou Cannabis. A associação do álcool com as medidas da curva foi mais aparente na coorte mais jovem (< 19 anos).

“Os efeitos foram observados mais prontamente em adolescentes mais jovens, porque são eles que ainda estão progredindo nessa trajetória de desenvolvimento normal”, observou o Dr. Adolf. “De certa forma, quanto mais jovem você for quando for exposto ao álcool, provavelmente mais vulnerável você é.”

Estudos prévios já sugeriram que o dano nos tratos de substância branca está associado a maior reatividade neural pelo efeito do álcool em adultos com transtorno por uso de álcool. Dada esta evidência, a maior degradação da substância branca em jovens versus em pessoas mais velhas pode ajudar a explicar por que os adolescentes que começam a beber desde cedo têm maior probabilidade de apresentarem dependência mais tarde, escreveram os pesquisadores.

Dentre os cinco maiores tratos de fibras, apenas as fibras comissurais (corpo caloso) exibiram uma associação significativa com o álcool. Os pesquisadores observaram que a redução do volume da substância branca e a desmielinização do corpo caloso são os marcadores mais proeminentes de uso disfuncional de álcool em adultos, sendo potenciais marcadores do abuso de álcool em adolescentes.

Ao realizar a extensão da análise para as quatro sub-regiões do corpo caloso, os pesquisadores descobriram que apenas as regiões calosas anterior e média (joelho e tronco) exibiram interações significativas entre álcool e idade.

Isso pode ser resultado do momento da mielinização das fibras nessas regiões do cérebro em comparação com as demais, disse o Dr. Adolf.

Ele observou que essas fibras conectam as porções direita e esquerda das regiões anteriores do cérebro, especialmente os lobos frontais, que são particularmente vulneráveis aos efeitos do álcool. “É plausível que haja essa interação entre o momento do desenvolvimento e a sensibilidade das partes frontais do cérebro”, acrescentou ele.

Efeitos cognitivos?

Embora os pesquisadores não tenham encontrado efeitos de gênero, o Dr. Adolf destacou que isso não significa que eles não existam. “Talvez a gente apenas não tenha o poder de estudo suficiente para observá-los”, comentou.

O estudo não avaliou especificamente as pessoas que bebem compulsivamente, definidas como homens que tomam cinco doses em duas horas e mulheres que tomam quatro doses em duas horas. O Dr. Adolf observou que é difícil obter uma “boa quantificação” do consumo compulsivo. “Não temos uma análise suficientemente refinada para discernir isso”, disse.

Indagado sobre se a trajetória da anisotropia fracionada alterada naqueles que bebem excessivamente afeta a cognição, o Dr. Adolf disse que “esses estudos ainda estão em andamento”, e espera-se que os resultados estejam disponíveis em cerca de um ano.

O Dr. Adolf disse que ele e seus colaboradores continuam acompanhando esses adolescentes e esperam observar se a alteração da trajetória da anisotropia fracionada naqueles que bebem excessivamente volta ao normal, acrescentando que “a verdadeira questão agora é: Se eles pararem de beber excessivamente, eles voltarão ao esperado?”

Acredita-se que esse estudo seja o primeiro a sugerir uma vulnerabilidade diferencial in vivo na microestrutura da substância branca em relação à idade, escreveram os autores.

Além de perguntar aos adolescentes sobre o consumo de bebidas alcoólicas, o médico deveria se incumbir de “aconselhar e referenciar”, disse o Dr. Adolf. Ele também sugeriu o acesso a recursos do National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism.

Dados importantes, mas várias limitações

Comentando para o Medscape, o Dr. Oscar G. Bukstein, médico e diretor clínico do serviço ambulatorial de psiquiatria do Boston Children’s Hospital, e professor de psiquiatria na Harvard Medical School, nos EUA, disse que os achados trazem mais evidências de que o álcool afeta o cérebro em maturação.

Esse estudo, e outros que avaliaram o uso de Cannabis, “mostram que em no cérebro em crescimento dinâmico, certas regiões, particularmente o corpo caloso anterior e médio neste caso, vão se maturar tardiamente e têm maior probabilidade de serem afetadas pelo uso precoce de álcool”, disse o Dr. Oscar, que não participou da pesquisa.

Ele destacou a importância de determinar o mecanismo envolvido e observou algumas limitações do estudo. Por exemplo, a tecnologia de DTI utilizada pode “já estar desatualizada”, ele comentou.

Usar uma tecnologia antiga pode ter impedido que os pesquisadores notassem o impacto do consumo excessivo de bebida alcoólica em partes do cérebro além do corpo caloso anterior e médio, observou o Dr. Oscar.

Uma tecnologia mais nova poderia fornecer “uma análise de voxels não lineares mais refinada”, embora o uso de técnicas de imagem cerebrais mais atuais talvez não levasse à detecção de diferenças adicionais nos grupos de estudo, ele acrescentou.

O Dr. Oscar também observou outras limitações: O estudo não utilizou “gradações”, e apenas analisou o consumo excessivo e o consumo discreto ou ausente de bebida alcoólica. “Seria interessante saber sobre os jovens que estão no meio.” O trabalho também não determinou um “ponto de corte” no qual os efeitos deletérios do álcool no cérebro se iniciam, acrescentou.

Adicionalmente, o estudo não avaliou desfechos de desenvolvimento cerebral em jovens com doenças como depressão e transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH), conhecidas por levarem ao abuso de substâncias – algo que um estudo maior poderia ser capaz de fazer, ele disse.

O Dr. Oscar observou que uma pesquisa mais recente e muito maior, o estudo Adolescent Brain Cognitive Development (ABCD), começou a avaliar jovens com fatores de risco como uso de substâncias, a partir dos 10 anos.

O estudo foi financiado por fundos do National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA) dos EUA, National Institute on Drug Abuse, National Institute of Mental Health, National Institute of Child Health and Human Development e Stanford Institute for Human-Centered Artificial Intelligence-AWS Cloud Credits for Research. O Dr. Adolf informou que recebeu fundos do NIAAA durante o estudo. O Dr. Oscar informou não ter conflitos de interesses.

JAMA Psychiatry. Publicado on-line em 30 de dezembro de 2020. Abstract

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Fonte: Pauline Anderson para Medscape - Fotografia da capa: Rebcenter Moscow para Pixabay

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