Intensivistas: maioria não percebe que tem esgotamento físico e mental

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Muitos intensivistas parecem desavisados da própria exaustão associada ao atendimento prestado ao longo da pandemia. Avaliações objetivas mostram que esses profissionais apresentam altos níveis de todas as manifestações de burnout, mesmo que os próprios não percebam.

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“Eu penso que ignorar ou identificar de menos qualquer doença, física ou mental, é extremamente perigoso”, disse ao Medscape por e-mail a Dra. Anuj Mehta, médica da Denver Health & Hospital Association, nos Estados Unidos. “Negar ou deixar de identificar que a pessoa tem pressão alta ou diabetes não impede o surgimento de complicações, e o burnout é parecido: quando os médicos ficam exaustos, eles sofrem graves consequências físicas e mentais, aumentando a rotatividade de trabalho e piorando os desfechos dos pacientes. E isso vai ocorrer independentemente da consciência desses profissionais sobre o próprio burnout”, ela acrescentou.

“Portanto, o primeiro passo para lidar com um problema é reconhecer que o problema existe: o burnout não é um desdobramento natural do exercício da medicina intensiva ou do atendimento em saúde em geral, e a gente não deve aceitar que o seja”, enfatizou a médica. Por esse motivo, Dra. Anuj e colaboradores realizaram um estudo multicêntrico para avaliar o burnout em intensivistas.

O estudo foi publicado on-line em 07 de dezembro de 2021 no periódico Chest.

Três unidades de terapia intensiva distintas

No total, 58 profissionais de saúde que atuam nas unidades de terapia intensiva (UTI) de três hospitais em Denver, nos EUA, participaram do estudo: 26 médicos, 22 enfermeiros, seis fisioterapeutas respiratórios, três farmacêuticos e um coordenador do programa de cuidados com o paciente. De acordo com os autores, todos os participantes responderam às perguntas do Maslach Burnout Inventory (MBI), e entrevistas e grupos focais foram realizados tanto presencialmente como on-line.

A maioria dos participantes (61%) era de mulheres; aproximadamente a mesma porcentagem era casada e quase a metade trabalhava na UTI em questão há menos de cinco anos. “Todos os profissionais apresentaram taxas moderadas a altas de componentes individuais do MBI”, segundo Dra. Anuj e colaboradores. Por exemplo, 71,4% dos participantes apresentaram níveis moderados a altos de exaustão emocional no MBI.

Cerca de 53,6% dos participantes referiram sentimentos de despersonalização no mesmo inventário, e o mesmo percentual referiu falta de realização pessoal. No entanto, os resultados variaram de acordo com a profissão, se enfermeiro ou médico.

Por exemplo, 19 dos 22 enfermeiros que participaram do estudo relataram níveis mais elevados de exaustão emocional e 15 relataram sentimentos de despersonalização. Os enfermeiros também registraram níveis mais baixos de realização pessoal em comparação aos outros profissionais, especialmente os médicos. Em comparação com os médicos, os enfermeiros tiveram um risco mais de nove vezes maior de relatar níveis mais baixos de realização pessoal: razão de chances ajustada (RCa) de 9,38; intervalo de confiança (IC( de 95% de 2,21 a 39,82).

A falta de respeito relatada pelos participantes se correlacionou com os baixos níveis de realização pessoal. “Quando solicitados diretamente o próprio burnout, poucos participantes indicaram burnout moderado a alto”, enfatizaram a Dra. Anuj e seus colaboradores. Como eles especulam, o resultado da avaliação do burnout feita pelos participantes pode simplesmente indicar que os intensivistas não estão dispostos a admitir a extensão do próprio burnout devido ao estigma.

Três desencadeantes

A análise das entrevistas qualitativas revelou três propulsores de burnout, sendo o primeiro os fatores ligados ao paciente.

“Os participantes destacaram casos clinicamente ‘fúteis’ e famílias difíceis de lidar como principais fatores ligados ao paciente propulsores de burnout”, disseram os autores. Não que os participantes não desejassem cuidar de pacientes doentes – eles se dispuseram a exercer exatamente esta função, conforme sugerido pelo feedback dos próprios.

No entanto, executar tarefas percebidas como clinicamente fúteis não é o mesmo que cuidar de pacientes doentes, e “intervenções agressivas para pacientes com pouca chance de recuperação muitas vezes foram vistas como uma forma de contribuir para o ‘sofrimento do paciente’, exaurindo todos os participantes”, observou a Dra. Anuj.

Um segundo fator de desgaste foi o que os autores chamaram de “dinâmica de equipe”. Com isso, eles quiseram dizer que pelo menos alguns médicos deixaram de conversar sobre os objetivos do tratamento com os pacientes e os respectivos familiares quando a probabilidade de recuperação diminuiu. Abdicar da responsabilidade de ter conversas difíceis sobre a morte gerou animosidade dentro da equipe e contribuiu diretamente para o burnout dos profissionais, apontaram os autores.

Enfermeiros e fisioterapeutas também referiram que os médicos ignoram sua experiência no cuidado de pacientes e o conhecimento que essa experiência lhes proporciona. Os médicos, por sua vez, expressaram frustração em relação à falta de confiança por parte de alguns enfermeiros. Uma cultura hospitalar indiferente, que sobrecarrega profissionais com funções administrativas, também causou burnout em todos os profissionais, continuaram os autores.

“Devido à limitação de tempo, as tarefas administrativas infladas foram inevitavelmente realizadas em detrimento do atendimento ao paciente, passando a impressão de que a motivação do hospital/da instituição era majoritariamente financeira”, afirmaram os pesquisadores. Prontuários eletrônicos também foram apontados, ao menos pelos enfermeiros, como fatores que contribuem para o burnout. Isso porque os prontuários eletrônicos permitem que os médicos registrem solicitações de qualquer lugar, o que também reduz o tempo à beira do leito, o que dificulta as discussões com os pacientes.

Os participantes também criticaram a administração do hospital, pois sentem que a administração é mais inclinada a apontar erros do que a reconhecer a dificuldade de prestar atendimento médico a pacientes com quadros complexos.

Com base nesses achados, várias estratégias podem ajudar a aliviar o burnout entre os intensivistas, sugeriram os autores. Em primeiro lugar, alguns estudos propuseram que indivíduos com maior resiliência podem ser menos propensos ao burnout. Assim, “nossos achados sugerem que a promoção da resiliência em profissionais focada em cuidar de pacientes com poucas chances de recuperação pode ter um impacto mais amplo na redução do burnout na UTI”, sugeriram os pesquisadores.

Oferecer mais consultas paliativas de rotina ou ter uma abordagem multidisciplinar para discussões sobre os objetivos do tratamento também pode ajudar a abordar os fatores do paciente e da equipe que levam ao burnout, acrescentaram. Por outro lado, as intervenções que se concentram em apenas um tipo de profissional e que não levam em consideração a natureza “contagiosa” da dinâmica em equipe são provavelmente ineficazes em UTI, advertiram os autores.

Em vez disso, “especulamos que pode ser mais eficaz para os sistemas de saúde concentrar as intervenções na melhora da dinâmica da equipe e da cultura hospitalar”, sugeriram Dra. Anuj e equipe. Na verdade, eles especularam que as intervenções que ignoram a cultura hospitalar terão pouco sucesso em ajudar a aliviar o burnout entre seus intensivistas.

“Com relatos de que quase 30% dos profissionais de saúde consideram deixar a área devido ao burnout, a saúde se encontra à beira de outra catástrofe, e são necessárias atitudes urgentes para desenvolver intervenções eficazes e sustentáveis e reduzir o burnout na saúde, incluindo na UTI”, aconselharam os autores.

Questionado se a falta de consciência sobre o nível de burnout do intensivista pode ser algo bom, o Dr. Robert Maunder, psiquiatra-chefe adjunto, chefe de pesquisa em psiquiatria e professor de psiquiatria da University of Toronto, no Canadá, pontuou que negar ou subestimar o impacto do estresse crônico é uma resposta comum e pode ser adaptativa até certo ponto em ambientes como a UTI, mas, em longo prazo, melhorar as condições que estão contribuindo para o malefício ocupacional depende de reconhecê-las.

Como aliviar o burnout?

“Não é bom para os pacientes ou para a equipe que os profissionais que prestam atendimento fiquem exaustos”, enfatizou ele em um e-mail para o Medscape. O Dr. Robert também considerou que é “fundamental” que as instituições reconheçam que controlam os fatores que mais contribuem para o burnout. “Colocar sobre os indivíduos o ônus de serem mais resilientes não é sustentável e não se encaixa nas evidências”, disse ele.

“Eliminar completamente o burnout é improvável, mas podemos fazer muito melhor”, enfatizou. “Essa equipe foi afetada pela angústia moral de fornecer cuidados em face da futilidade e lidar com a dinâmica familiar desafiadora”, acrescentou.

Burnout implica custos

“Esses são desafios aos quais podemos responder como um sistema”, ele insistiu. A Dra. Anuj concordou com o Dr. Robert, acrescentando que, francamente, o burnout é caro. “Os custos em longo prazo de substituição de médicos, enfermeiras e fisioterapeutas respiratórios na UTI são enormes, e a substituição constante de pessoas que estão saindo reduz a moral e leva pessoas muito menos experientes ao atendimento”, explicou.

O esgotamento também afeta a segurança do paciente e seus desfechos, o que pode afetar o reembolso, reclamações por negligência médica e classificações do hospital, observou a Dra. Anuj. “Para observar os benefícios de fazer tudo para combater o burnout, os hospitais precisam mudar a mentalidade do curto para o longo prazo”, sugeriu.

“Para conseguir isso, hospitais e sistemas de saúde precisam parar de pensar nos profissionais de saúde como substituíveis ou engrenagens de um sistema, e reconhecer que são seu recurso mais valioso – que deve ser protegido acima de tudo”, concluiu.

O estudo foi financiado pelos National Institutes of Health dos Estados Unidos. A Dra. Anuj e o Dr. Robert informaram não ter conflitos de interesses.

Chest.  Publicado on-line  em 07 de dezembro de 2021.

Fonte: Pam Harrison para Medscape - Foto: Ryan McGuire para Pixabay

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