Com a pandemia, o imaginário infantil, cheio de monstros, foi substituído por medo de animais, da perda dos pais e do coronavírus, mas nada que o diálogo e a proteção dos adultos não possam aplacar, afirmam especialistas
“Antes da pandemia os medos eram mais fantasiosos, como de personagens de filme de terror, por exemplo, mas um grande acontecimento, como a pandemia, deu lugar aos medos reais”, conta a psicóloga Geovana Figueira Gomes, que estudou os medos infantis nesses tempos de covid-19. Em sua pesquisa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, a pesquisadora observou, entre as crianças, mais medos de natureza real. A forma como o mundo se apresenta e as mudanças constantes influenciam esses temores. E, provocadas pelo clima da pandemia, no lugar dos fictícios, as crianças tiveram mais medo de animais e insetos, da perda dos pais, das doenças e, principalmente, do coronavírus.
Os dados são do mestrado Medos infantis na contemporaneidade: contribuições do procedimento de desenhos-estórias com tema, apresentado em abril ao programa de pós-graduação da FFCLRP, sob orientação da professora Valéria Barbieri.
Geovana coletou informações de 40 crianças do ensino fundamental estimuladas a desenhar e contar histórias sobre seus medos. O estudo foi realizado em dois momentos: antes da pandemia, de forma presencial nas escolas, e durante o isolamento social, em chamadas de vídeo pelo WhatsApp.
As 20 meninas e os 20 meninos fizeram um desenho, contaram uma história e deram um título às suas produções a partir da pergunta: do que uma criança tem medo hoje?, conta a pesquisadora. Ao final, as crianças participaram de conversas, apresentando suas experiências.
Necessidade do diálogo com linguagem acessível
Ao lado da mudança dos medos, Geovana notou que a pandemia também deixou clara a função do diálogo com linguagem acessível no trato com as crianças em qualquer situação de temor. A psicóloga lembra que é normal o medo surgir nessa fase da vida; o contrário, a falta dele, é que deve preocupar. Mas é importante que o medo não a invada, já que, durante o desenvolvimento infantil, a criança precisa ser preservada e o lugar em que vive é crucial para ela crescer menos temerosa.
Para a orientadora do estudo, a professora Valéria Barbieri, é preciso oferecer confiança para a criança se sentir segura. Quando o meio não favorece, a experiência pode se tornar traumática, uma vez que ela ainda não desenvolveu suficientemente os meios para viver tais experiências. São estas situações que preocupam as especialistas, pois podem originar sintomas como: ansiedade, transtornos relacionados a traumas ou estressores, transtorno obsessivo-compulsivo e fobias, entre outros.
De toda forma, a professora ressalta que “não é porque algo invasivo aconteceu na vida da criança que isso resultará necessariamente em um transtorno”. É importante que os pais e responsáveis fiquem atentos aos conteúdos que ela consome, assiste, ouve, seja no convívio escolar, seja em casa. “Não é qualquer coisa que as crianças podem assistir”, insistem as psicólogas, afirmando que hoje existe muita liberdade de acesso a informações, mas se elas não estão prontas é algo que pode ser muito prejudicial.
Geovana ensina aos pais e profissionais que trabalham com crianças que o melhor é não esconder e sim dialogar, criando estratégias para entender onde o medo está surgindo; verificar a segurança delas em determinados lugares e como essas informações têm chegado até elas.
Em qualquer circunstância, é muito importante acolher e levar a sério os medos infantis, alerta a professora Valéria. Os pais devem se interessar por seus filhos e protegê-los das invasões do ambiente, confortando-os quando o medo aflora. “Os braços do pai, da mãe, ou de qualquer outra pessoa de confiança, são os melhores remédios contra a ansiedade infantil.” Mas quando esses medos durarem ou aflorarem por muito tempo, os pais devem procurar ajuda profissional sem demora.
Expressão da força criativa, imaginário precisa ser preservado
A professora Valéria afirma que os medos imaginários podem ser até mais violentos, “porque são frutos da imaginação e é mais difícil se proteger deles”. Por outro lado, “crianças usam mecanismos de defesa mais potentes para enfrentar os medos fictícios”.
Já os medos de objetos e situações reais “ganham os contornos que a imaginação não pode dar e, por isso, a proteção contra eles é facilitada”. Valéria cita as medidas para controle da pandemia – uso de máscara, higienização das mãos e vacinação – como exemplos de armas contra o medo real.
Então, com o amadurecimento, os medos de objetos e situações reais vão substituindo pouco a pouco os imaginários, mas não podem suplantá-los totalmente, “porque sempre precisa haver espaço para a imaginação na vida da pessoa”, diz Valéria.
A força criativa, da qual é expressa a imaginação, é que permite a qualquer pessoa avançar na vida, impedindo que fiquemos colados na realidade sem vibrar com ela. “Só quando a pessoa expressa a sua criatividade no mundo e percebe que nele existe um espaço para isso, é que ela sente que a vida vale a pena ser vivida. Se não, a vida fica sem sabor, sem sentido. A criatividade é a força mais importante que nós temos para o crescimento e ela precisa ser preservada, resguardada. Ficar muito colado à realidade dá a aparência de saúde, mas é uma normalidade falsa”, finaliza.
Ouça entrevista das pesquisadoras ao Jornal da USP no Ar, Edição Regional, no player abaixo