O transtorno depressivo maior (TDM) está associado a alterações no metabolismo energético e lipídico, possivelmente causadas pela interação entre o microbioma intestinal e metabólitos sanguíneos, segundo uma pesquisa inédita.
Pesquisadores descobriram que o TDM tinha “assinaturas” metabólicas específicas, compostas de 124 metabólitos relacionados a vias metabólicas energéticas e lipídicas, sendo que algumas delas estavam relacionadas especificamente ao ciclo do ácido tricarboxílico (também conhecido como ciclo de Krebs). Essas alterações nos metabólitos foram recorrentes em diferentes composições de microbiota intestinal.
Os pesquisadores descobriram que os ácidos graxos e as lipoproteínas de densidade intermediária ou muito alta sofreram alterações associadas à evolução do quadro depressivo. Por outro lado, as lipoproteínas de alta densidade (HDL) e os metabólitos do ciclo de Krebs permaneceram inalterados.
“Enquanto aguardamos para estabelecer relações causais através de ensaios clínicos, os médicos devem orientar os pacientes que sofrem de transtornos do humor a modificar sua dieta, aumentando a ingestão de frutas frescas, vegetais e grãos integrais, pois eles fornecem as fibras e a energia necessárias para o crescimento da microbiota intestinal e, assim, são produzidos mais ácidos graxos de cadeia curta, levando a um estado fisiológico ideal”, disse ao Medscape a primeira autora do estudo e pesquisadora sênior Dra. Najaf Amin, Ph.D., doutora em ciências afiliada ao Nuffield Department of Population Health da Oxford University, no Reino Unido.
“Ao mesmo tempo, os pacientes devem ser orientados a reduzir a ingestão de açúcares e alimentos processados, os quais reconhecidamente têm o efeito oposto sobre o microbioma intestinal e estão associados à intensificação do estado inflamatório”, disse ela.
O estudo foi publicado on-line em 19 de abril no periódico JAMA Psychiatry.
Transtorno depressivo: uma doença pouco compreendida
Embora a maioria dos antidepressivos atue sobre as vias monoaminérgicas, “cada vez mais evidências apontam para uma interação mais complexa entre múltiplas vias, compostas de uma ampla gama de alterações relacionadas ao metabolismo energético e lipídico”, escreveram os autores.
Pesquisas anteriores, realizadas com o auxílio de uma tecnologia de identificação de metabólitos baseada em ressonância magnética nuclear de prótons, mostraram uma “mudança”, com queda dos níveis de HDL e aumento dos níveis de lipoproteínas de densidade muito baixa (VLDL) e triglicerídeos em pacientes com transtorno depressivo.
O microbioma intestinal, que é modulado principalmente pela alimentação, “se mostrou um dos principais determinantes dos lipídios séricos, especialmente os triglicerídeos e as HDL, além de ser um regulador da função mitocondrial”, observaram os pesquisadores. Já se sabe que pacientes com TDM apresentam alterações no microbioma intestinal.
Essas alterações poderiam “explicar parte da mudança nos níveis de VLDL e HDL observada em pacientes com TDM e [ajudar a determinar] se as assinaturas metabólicas da doença poderiam ser usadas como uma ferramenta para inferir a associação entre o microbioma intestinal e o quadro”.
A Dra. Najaf disse que “a doença é uma das menos compreendidas, já que os seus mecanismos fisiopatológicos permanecem obscuros”.
Estudos genéticos em larga escala “mostraram que o papel da genética no transtorno depressivo é discreto”, ela acrescentou. Por outro lado, estudos iniciais em animais sugeriram que o microbioma intestinal “pode ter função causal no quadro”.
Vários estudos avaliaram a influência do microbioma intestinal sobre a doença, “no entanto, devido ao pequeno tamanho das amostras e ao ajuste inadequado para fatores de confusão, a maioria dos achados não foi replicável”.
Aproveitando a magnitude do UK Biobank, os pesquisadores analisaram 58.257 indivíduos que tinham entre 37 e 73 anos no início do estudo. Eles utilizaram dados de metabólitos plasmáticos dos pacientes com TDM coletados através de espectroscopia por ressonância magnética. Os indivíduos não acometidos pelo quadro no início do estudo serviram como controles.
Uma análise de regressão logística foi realizada para testar a associação entre os níveis plasmáticos de metabólitos e a doença em quatro modelos, cada um com maior número de covariáveis.
Para identificar padrões de correlação entre as “assinaturas metabólicas do TDM e do microbioma intestinal humano”, os pesquisadores analisaram as assinaturas metabólicas do TDM em relação às da microbiota intestinal e vice-versa.
Também foi utilizada uma randomização mendeliana bidirecional com duas amostras para determinar a natureza da associação observada entre os metabólitos e a patologia.
Os indivíduos com TDM crônico e TDM recorrente foram comparados com os indivíduos do grupo controle (6.811 versus 51.446 e 4.370 vs. 62.508, respectivamente).
Os participantes com o quadro crônico eram significativamente mais jovens (mediana [intervalo interquartil] de 56 anos [49 a 62] vs. 58 anos [51 a 64]) e tinham uma maior tendência a ser do sexo feminino em comparação com os do grupo controle (54% vs. 35%).
‘Achados inéditos’
Na análise totalmente ajustada, as assinaturas metabólicas do TDM encontradas consistiam em 124 metabólitos relacionados às vias energética e lipídica.
Os pesquisadores apontaram que entre esses “achados inéditos” havia 49 metabólitos, sendo que dois deles participam do ciclo de Krebs: citrato e piruvato.
Os achados mostraram que os ácidos graxos, as lipoproteínas de densidade intermediária e a VLDL sofreram alterações associadas à evolução da doença. Por outro lado, a HDL e os metabólitos do ciclo de Krebs se mantiveram inalterados.
“Observamos que os gêneros Sellimonas, Eggerthella, Hungatella e Lachnoclostridium eram mais abundantes, enquanto os gêneros Ruminococcaceae, Coprococcus, Lachnospiraceae e Subdoligranulum, [a espécie] Eubacterium ventriosum e a família Ruminococcaceae estavam ausentes no intestino de indivíduos com mais sintomas depressivos”, disse a Dra. Najaf. “Dentre esses [microrganismos], foram obtidas evidências estatísticas de que o gênero Eggerthella participa de uma via metabólica possivelmente causadora [de TDM].”
Esses microrganismos participam da síntese de neurotransmissores importantes, como ácido gama-aminobutírico, butirato, glutamato e serotonina, observou ela.
O butirato produzido pelo intestino pode atravessar a barreira hematoencefálica, penetrar no cérebro e afetar as atividades transcricional e translacional, ou ser usado pelas células para gerar energia, ela acrescentou. “Então, basicamente, o butirato pode influenciar o TDM por diversas vias: regulação imunológica, transcrição e tradução genômicas e/ou afetando o metabolismo energético.”
Sem causalidade
Comentando para o Medscape, o Dr. Emeran Mayer, médico e professor emérito de pesquisa médica no G. Oppenheimer Center for Neurobiology of Stress and Resilience e no UCLA Brain Gut Microbiome Center, ambos nos EUA, disse que este é, até hoje, o “maior, mais abrangente e mais bem validado estudo de associação a fornecer mais evidências para uma associação entre táxons microbianos intestinais previamente identificados em pacientes com TDM, metabólitos sanguíneos (gerados pelo hospedeiro e por microrganismos) e dados de questionários.”
No entanto, “apesar dos seus pontos fortes, a pesquisa não nos permite identificar um papel causal das alterações do microbioma sobre as mudanças microbianas e metabólicas observadas (nos ácidos graxos e em componentes do ciclo de Krebs)”, alertou o Dr. Emeran, que não participou do estudo.
Além disso, “não é possível concluir que as alterações microbianas intestinais têm um papel causal no fenótipo comportamental do TDM”, ele concluiu.
Os dados metabolômicos foram fornecidos pelo Alzheimer’s Disease Metabolomics Consortium. O estudo foi financiado total ou parcialmente por subsídios do National Institute on Aging e da Foundation for the National Institutes of Health. Além disso, a pesquisa também recebeu apoio da ZonMW Memorabel. A Dra. Najaf Amin informou não ter conflitos de interesses relevantes. Os conflitos de interesses dos demais autores estão listados no artigo original. O Dr. Emeran Mayer é membro do conselho consultivo científico das empresas Danone, Axial Therapeutics, Viome, Amare, Mahana Therapeutics, Pendulum, Bloom Biosciences e APC Microbiome Ireland.
JAMA Psychiatry. Publicado on-line em 19 de abril de 2023. Abstract
Este conteúdo foi originalmente publicado no Medscape
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Fonte: Batya Swift Yasgur para Medscape – Foto: Wayhomestudio para Freepik