A morte era iminente. E lenta. A notícia sobre a doença terminal do marido afogou Estela na maior dor possível. Ela não sabia como agir. Cuidou dele todos os dias, por cinco anos. Mas era mais do que podia suportar. Sentia raiva do mundo. Ninguém poderia entender de verdade – a dor era dela. Ainda assim, queria a ajuda dos amigos, mas sem ter de pedir, sentia-se invadida. Se tentassem ajudar, ficava brava. Se não tentavam, pior ainda. Aos poucos se afastou de todos, isolando-se na própria e devastadora dor. A vida não tinha mais graça. E não era um momento passageiro. Tudo era chato, sem cor, sem prazer. Os tempos de alegria haviam sido uma ilusão tola, pensava. Estela sabia que nunca mais encontraria esse falso prazer. Depois piorou. Quando o marido morreu, ela se sentiu aliviada. E esse alívio a destroçou com uma sensação de culpa do tamanho do mundo. Queria morrer junto. A depressão se fincou nela.
Estela, que prefere usar um nome fictício, é uma entre as 350 milhões de pessoas com depressão no mundo. Um número que só aumenta e que virou um problema de nossa era: só nos Estados Unidos, o consumo de antidepressivos aumentou 400% em 20 anos. Mas, historicamente, depressão é um conceito que surgiu outro dia. Por séculos, ela era uma doença misteriosa chamada apenas de melancolia. “Perdi toda a alegria e descuidei-me dos meus exercícios habituais”, disse Hamlet logo após o assassinato do pai. Se vivesse hoje, o personagem de Shakespeare certamente entraria na mira dos médicos. Ele seria enquadrado no DSM-V, a bíblia da psiquiatria, que identifica e diagnostica os transtornos mentais. Hamlet, sob os olhos da medicina contemporânea, teve depressão.
Dos tempos de Shakespeare para cá, muita coisa mudou. Tristeza não é doença. Depressão é, com sintomas reconhecidos, padronizados e tratamentos específicos. E uma indústria que desenvolveu remédios para combater esse mal que deve crescer ainda mais. A Organização Mundial da Saúde aposta que em 2030 a depressão já será a doença mais comum do mundo, à frente de problemas cardíacos e câncer. Vivemos uma espécie de epidemia de mal-estar: há mais pessoas deprimidas do que nunca. Ironicamente, justo em uma época em que a busca pela felicidade é algo quase obrigatório. Você conhece alguém que não queira ser feliz? Soa bizarro e anacrônico. Nosso estilo de vida gera angústia e tristeza – que podem levar à depressão. É grave, ficamos vulneráveis a ela, com o risco maior de cair no abismo: passar a barreira dos sintomas leves e entrar numa depressão profunda. É como se a vida fosse uma calçada esburacada – nem todo mundo que tropeça cai e se arrebenta. Dá para controlar a queda, se segurar etc. Mas quem desaba no chão corre o risco de não se levantar mais: 15% das pessoas com depressão grave cometem suicídio.
O medo da depressão e a busca incessante por felicidade fizeram muita gente fugir da tristeza como se ela fosse uma peste dos nossos tempos. Quem quer ter isso? Quem quer ficar perto de alguém que tem? Isso impulsionou o desenvolvimento de remédios com efeitos colaterais cada vez menos nocivos. Mas também levou a uma certa banalização. “Eu tenho a impressão de que todo mal-estar virou depressão”, diz Mário Corso, psicanalista e autor do livro A Psicanálise na Terra do Nunca. “É uma coisa da nossa época. Depressão é a palavra que serve para tudo, as pessoas não sabem o que têm e dizem que estão deprimidas”, explica. Tanya Luhrmann, antropóloga especializada em psicologia da Universidade Stanford, nos EUA, acha que há um clima de exagero. “Estou certa de que nós damos muito remédio às pessoas e que tristeza comum é tratada com medicação”, diz. Saber a diferença entre tristeza e depressão é essencial. “A tristeza tem motivos, a depressão não tem motivo nenhum”, explica Corso. Na tristeza, choramos pela morte de alguém. Ficamos tristes, mas a dor passa, por mais que a saudade não. Na depressão, a dor não passa. A pessoa não sente mais prazer em nada. E foi nessa zona cinzenta de desinformação que nasceu a farra das farmácias. A busca por um comprimido mágico que promete milagres, transformando dor em felicidade, levou muita gente a desaprender a lidar com a tristeza.
Ranking da felicidade
Índice baseado em critérios como saúde, segurança, educação e oportunidades
Os mais felizes
1. Noruega
2. Dinamarca
3. Suécia
4. Austrália
5. Nova Zelândia
6. Canadá
7. Finlândia
8. Holanda
9. Suíça
10. Irlanda
Os mais tristes
1. República Centro-Africana
2. Congo
3. Afeganistão
4. Chade
5. Haiti
6. Burundi
7. Togo
8. Zimbábue
9. Iêmen
10. Etiópia
No meio do caminho: Brasil, em 44º lugar entre 142 países.
Fontes Kantar Health (Reino Unido); Legatum Institute, 2012 (Reino Unido); Organização Mundial da Saúde (OMS); Universidade de Warwick (Reino Unido).
A INDÚSTRIA DA DEPRESSÃO
Sigmund Freud conhecia um remédio legal para curar depressão. Chamava-se cocaína. Usuário e entusiasta da droga, ele a receitava para pacientes que sofriam de tristeza recorrente e sem explicação. Antes disso, os estimulantes mais receitados eram morfina e heroína – até descobrirem que ambas viciavam e tinham efeitos colaterais perigosos. Mas aí, veja só, viram que cocaína também era um problema. Em 1914, os EUA foram o primeiro país a proibi-la. Só na década de 1950 surgiu um substituto eficaz contra esse vazio da alma. Como na origem de tantos outros remédios, miraram aqui e acertaram ali. O Marsilid surgiu como uma tentativa de encontrar a cura para a tuberculose, mas quem o tomava ficava um tanto alegre. Ninguém sabia explicar por quê. Até que em 1965 o psiquiatra americano Joseph J. Schildkraut elaborou a primeira teoria para explicar os efeitos do remédio e, de quebra, as causas da depressão. Ele dizia que a tristeza é um descompasso bioquímico no cérebro ligado à serotonina, dopamina e noradrenalina, os neurotransmissores que regulam o humor e as sensações de prazer e recompensa. Se os níveis dessas substâncias estivessem baixos, era indício de depressão. Bastaria então tomar algo que aumentasse a taxa, e tudo ficaria lindo. E o princípio ativo do Marsilid era a iproniazida, que eleva, justamente, o nível de serotonina.
Foi uma mina de ouro para a indústria farmacêutica. Tratar doenças mentais deixou de ser coisa só de gente extremamente doente, à beira do hospício. O marketing dos laboratórios passou a mirar também em mães estressadas, trabalhadores cansados e qualquer cidadão propenso a uma fase deprê na vida. Desde a década de 1960, surgiram vários remédios que traziam bem-estar, sempre com ação direta na química cerebral. Mas as vendas nunca decolavam, porque os efeitos colaterais eram muito fortes, como inquietação, insônia e dificuldade em urinar.
Só em 1988 surgiu um medicamento que não só mudou de vez as cifras da indústria como conseguiu extravasar o universo das gôndolas das farmácias e virar um ícone cultural: o Prozac. Com efeitos colaterais bem menores, a “pílula da felicidade”, como foi chamada na época, entrou para a lista dos medicamentos mais vendidos no mundo. Desde então, surgiram cerca de 30 remédios destinados a combater a depressão. Mas nenhum deles ficou famoso como o Prozac, que, segundo a fabricante Eli Lilly, foi vendido a 90 milhões de usuários nesses 25 anos, enchendo os cofres da empresa. Em 2000, um ano antes de a patente expirar, ela faturou mais de US$ 2 bilhões com o remédio, cerca de 50% a mais que a Pfizer ganhou no mesmo ano com o Viagra.
Dos anos 90 para cá, o antidepressivo ficou comum. Para toda tristeza ou desânimo, ele passou a ser considerado um tratamento em potencial. Mas o Prozac não teria sido um megahit da década tão grande quanto Carla Perez ou Jurassic Park se não houvesse quem o receitasse.
Tudo que era tipo de médico passou a indicar antidepressivos. Tristeza aqui, melancolia acolá, tome remédio goela abaixo que melhora. Só que, como era de se esperar, nem sempre os diagnósticos batiam com o problema. Foi o que aconteceu com o professor aposentado Antônio Alves. Aos 45 anos, ele se sentia desanimado, sem vontade de fazer tarefas diárias. Procurou um psiquiatra que logo o diagnosticou com depressão e indicou um remédio. O tratamento surtiu efeito no início, mas depois perdeu a força. Desanimado, Antônio buscou uma segunda opinião. Ao se consultar com um clínico geral, descobriu que seu problema era outro: a andropausa havia chegado mais cedo. A contragosto do psiquiatra, Antônio abandonou os antidepressivos e passou a tomar repositores de hormônios. Não teve mais crise.
Além do fato de antidepressivos nem sempre surtirem efeito, agora a própria teoria que explica seu funcionamento está sendo questionada. Cinquenta anos depois, a teoria dos baixos níveis de serotonina não é mais tão forte. Alguns desses remédios, em vez de elevar a concentração da substância, abaixam ainda mais. Para complicar, nem todo cérebro deprimido tem pouca serotonina. Mesmo assim, ainda se acredita que a depressão é, sim, um desequilíbrio químico. O problema é que não se sabe ao certo quais são os neurotransmissores envolvidos.
Ou seja, não que fosse má-fé da classe médica receitar antidepressivo a torto e a direito. É que depressão é uma doença conhecida há pouco tempo e ainda muito misteriosa. Ela não é como o câncer, em que um exame de imagem mostra a regressão ou o aumento de um tumor, e uma biópsia revela o estágio e o grau da doença. Não há resultados impressos para mostrar se o tratamento teve resultado.
Existe a suspeita ainda que a culpa do caos químico no cérebro seja do estresse. Em resposta à tensão do ambiente externo, o corpo produz mais cortisol e outros hormônios do estresse. O excesso pode alterar a bioquímica cerebral e causar depressão. Se o problema for mesmo esse, então a infelicidade crônica pode ser uma resposta ao nosso estilo de vida. Estamos mais tristes, também, por causa da nossa sociedade.
Principais tipos de anti-depressivos
Tricíclicos
O que fazem - aumentam os níveis de serotonina e noradrenalina.
Efeitos colaterais - sedação, boca e olhos secos, prisão de ventre, ganho de peso, sonolência.
Exemplos - Tryptan (amitriptilina), Anafranil (clomipramina), Sinequan (doxepina).
Inibidores da monoamina oxidase
O que fazem - Anulam a monoamina oxidase, que destrói a serotonina, dopamina e norepinefrina.
Efeitos colaterais - ganho de peso, inquietação, disfunção sexual e insônia.
Exemplos - Marsilid (iproniazida), Nardil (fenelzina), Eldepryl (selegilina).
Inibidores seletivos de recaptação da serotonina
O que fazem - aumentam os níveis de serotonina.
Efeitos colaterais - náusea, insônia e disfunção sexual.
Exemplos - Prozac (fluoxetina), Pondera (paroxetina), Zoloft (sertralina).
Atípicos
O que fazem - atuam, de maneiras diferentes, na serotonina, norepinefrina e dopamina.
Efeitos colaterais - cada um é um caso. Podem suscitar convulsão, confusão, disritmia cardíaca, náusea, ansiedade, disfunção sexual e alergia.
Exemplos - Efexor (venlafaxina), Zetron (bupropiona), Cymbalta (duloxetina) e outros.
Leia a segunda parte da matéria.
Fontes Anvisa; IMS Health / Estado de Minas.
Reportagem: Carol Castro Edição: Felipe van Deursen
Com reportagem de Cristine Kist e Felipe van Deursen
para Superinteressante.