Nas poucas horas de sono que Íria Mara de Marco Silva, 51, conseguia ter durante as noites, ela costumava sonhar que estava em um velório, rodeada de pessoas conhecidas. No sonho, olhava para um caixão e via a sua própria figura deitada em estado inerte.
Os pesadelos, associados às constantes crises de choro, à insônia e à falta de vontade de ir ao trabalho, fizeram com que a professora de artes da rede estadual do Paraná percebesse que algo não estava bem. “Eu tinha palpitações, achava que ia ter um AVC (acidente vascular cerebral). Passei a não querer mais ir à escola, deixei de gostar dos alunos que eu tanto amava, deixei de me dar bem com os colegas de trabalho”, conta.
O diagnóstico foi rápido e claro. Íria Mara, hoje aposentada por invalidez, sofria da síndrome de burnout, ou síndrome do esgotamento profissional. A doença é uma resposta do organismo a uma situação de estresse laboral prolongado e crônico. O Ministério da Saúde não possui dados específicos sobre a incidência da síndrome de esgotamento no Brasil, mas informou que 697 casos de pessoas com transtornos mentais relacionados a atividades laborais foram notificados em 2013 no país, sendo este o dado mais recente.
“Diferente do estresse clássico, e apesar de também ter implicações físicas e emocionais, nesta síndrome o paciente está tão esgotado que não consegue mais trabalhar. As situações do dia a dia de trabalho já não o mobilizam mais”, explica o psicólogo e coordenador do Programa de Avaliação do Estresse da Beneficência Portuguesa, Armando Ribeiro.
Segundo Ribeiro, há três sintomas principais, todo ligados à atividade laboral, que podem indicar que o trabalhador sofre de esgotamento. O primeiro é a exaustão emocional. “No caso de médicos, por exemplo, eles não conseguem ser empáticos, não conseguem perceber o sofrimento do paciente, não conseguem mais se ligar emocionalmente durante o atendimento”, explica. O segundo sinal é a despersonalização. “O profissional não se identifica mais com aquela profissão, não se reconhece mais fazendo aquilo, não se sente mais motivado. Ele se pergunta se nasceu mesmo para fazer aquela atividade”, acrescenta.
Por último, Armando Ribeiro aponta a falta de realização profissional como um dos sintomas da síndrome. “O trabalhador não se sente mais motivado nem por um aumento no salário, nem por promoções. Nada adianta. Ele trabalha como um zumbi, no automático”, diz.
Nada a ver com horas trabalhadas
Apesar de trabalhar na rede pública, Íria Mara conta que atuava em apenas uma escola e cumpria uma carga horária de 40 horas semanais, embora costumasse levar trabalho para casa. “Eu sempre fui muito exagerada na minha dedicação à escola. As exigências eram bem grandes, mas o que mais me afetava era o comportamento dos alunos, o uso de álcool e drogas e a violência generalizada. A escola não ficava em um local perigoso e eu nunca fui vítima de violência”, conta.
Pessoas muito dedicadas ao trabalho, os chamados “workaholics”, possuem mais riscos de desenvolver a doença. “A pessoa que era muito dedicada agora passa a ser desleixada, se sente incapaz, incompetente. Isso é um sinal de esgotamento”, afirmou o psiquiatra Edson Hirata, do Hospital Santa Cruz.
O psicólogo Armando Ribeiro acrescenta ainda que síndrome não tem exatamente a ver com as horas trabalhadas, mas com a intensidade da exigência emocional que a atividade demanda. “A síndrome é muito comum em professores, porque é uma atividade que tem uma carga emocional pesada. Outras categorias profissionais também estão mais vulneráveis como médicos e enfermeiros”, afirma. Segundo o “Medscape Physician Lifestyle Report 2015″, publicação norte-americana sobre saúde e estilo de vida de profissionais da saúde do país, 46% dos médicos pesquisados no ano passado foram diagnosticados com burnout.
Implicações físicas
Quando o organismo é submetido a uma situação crônica de estresse, ocorrem alterações na produção dos hormônios cortisol e adrenalina. “Ambos têm o papel de regular a pressão, a imunidade, além de ajudar na atuação de outros hormônios fundamentais para a vida. O problema ocorre quando eles estão em excesso no corpo ou ainda quando são produzidos por um tempo prolongado, como ocorre na situação de burnout. Nesse cenário, a pessoa pode desenvolver hipertensão, diabetes, obesidade, problemas intestinais, além de ficar mais sujeita a infecções e distúrbios de memória”, explica o clínico-geral e professor da USP (Universidade de São Paulo) Paulo Camiz.
O ortopedista da Santa Casa de São Paulo e Hospital Israelita Albert Einstein, Alberto Gotfryd, explica que o profissional pode até desenvolver dores ósseo-articulares, principalmente nas costas, sem que exista um problema anatômico. “A pessoa não tem nenhuma doença, mas tem dores semelhantes às causadas por problemas graves como hérnia de disco e, em casos mais extremos, tumores na coluna”, diz.
Segundo Gotfryd, isso acontece porque o estresse prolongado tensiona a musculatura do corpo, fazendo com que ela se contraia. “Como o corpo precisa liberar a tensão de alguma forma, acaba fazendo isso nos músculos, que se contraem e entram em fadiga. É uma dor muito característica, perto do ombro, do pescoço e na região lombar”, explica.
Tem cura?
O tratamento da síndrome não é simples, pois é preciso um trabalho multidisciplinar para solucionar os problemas relacionados à doença. Segundo o psicólogo Armando Ribeiro, quando o profissional atinge o nível máximo de estresse, ele já desenvolveu doenças e já vive alterações importantes na produção de hormônios. “Nesse cenário, o paciente vai precisar tanto de tratamento para as doenças que desenvolveu quanto para o seu estado emocional. É muito comum que os pacientes necessitem de psicoterapia e medicação específica, como antidepressivos e ansiolíticos”, afirmou.
O ortopedista Alberto Gotfryd acrescenta que é essencial a prática de uma atividade física prazerosa. “A pessoa precisa ter uma válvula de escape que não esteja ligada ao trabalho, um hobby, um esporte. Se o hobby da pessoa não está relacionado à atividade física, ela precisa descobrir uma de que goste, que exija do corpo. É essencial para o alívio das tensões causadas pelo estresse”, conta.
Gotfryd recomenda exercícios de fortalecimento na musculatura do tronco, exercícios de estabilização, como pilates, e os aeróbicos de baixo impacto, como bicicleta ergométrica, caminhada e natação. Mas ele afirma que nada disso vai adiantar se a causa inicial não for mudada. “Tem que tratar o problema na raiz. É preciso que haja um esforço do paciente para diminuir a auto-cobrança. Mas essa não é uma tarefa fácil para quem é acostumado a trabalhar em um ritmo estressante, tendo que cumprir metas. É muito difícil mudar o estilo de vida”, diz.
Sair do trabalho pode não ser a solução. “Em geral, largar o trabalho também pode ser uma grande fonte de estresse. Assim, a melhor abordagem deve ser a adequação do trabalho e do estilo de vida da pessoa a práticas que não afetem negativamente a sua saúde”, aponta Paulo Camiz.
O psiquiatra Edson Hirata, do hospital Santa Cruz, afirma, no entanto, que é preciso haver mudança também na estrutura e na condição de trabalho. “Se não melhorar o trabalho, a organização e as condições, o trabalhador não vai melhorar. Nesses casos, ele precisa tentar modificar a sua realidade laboral, mas, se não conseguir, é melhor sair e procurar outro”, conclui.