A importância de ficar à toa

O neurocientista Andrew Smart mostra, por meio de pesquisas com o cérebro, que, além de ajudar na criatividade, o ócio faz bem para a saúde e é fundamental para o autoconhecimento

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Quanto mais manuais se vendem sobre foco e produtividade, menos tempo livre parecemos ter. Será que estamos andando na direção errada? Essa é uma das perguntas levantadas pelo neurocientista americano Andrew Smart, de 39 anos, pesquisador da Universidade de Nova York. O interesse pela questão do foco e do gerenciamento do tempo veio após um estudo que fez propondo uma terapia não-medicamentosa para jovens com déficit de atenção.

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Com suas pesquisas sobre o funcionamento do cérebro quando estamos em repouso, Smart entra na lista dos defensores do ócio. Uma lista, aliás, que começa na Antiguidade, com os gregos que desprezavam o trabalho, chega até Paul Lafargue, genro de Karl Marx e autor do clássico O Direito à Preguiça, e, mais recentemente, até Domenico de Masi, de O Ócio Criativo. Assim como seus antecessores, Smart sugere que abandonemos o conceito de produtividade e propõe desperdiçar o tempo, não fazendo absolutamente nada. No livro Autopilot: The Art and Science of Doing Nothing (“Piloto automático: a arte e a ciência de não fazer nada”), ele parte de descobertas recentes da neurociência, além de inspiradas observações sobre o mundo das artes, para afirmar que o cérebro, quando não o ocupamos com tarefas específicas, continua trabalhando, em uma espécie de “piloto automático”. E isso é necessário para processarmos as emoções e informações que recebemos. Daí a importância de ficar à toa, defende. Já traduzido para várias línguas, Autopilot terá uma edição brasileira em breve, pela Editora Geração.

Em seu livro, você afirma que a mente é mais ativa quando descansamos. O que ocorre no cérebro quando estamos assim?

Quando diminuímos o estímulo ou a atividade mental, nossa mente começa a vagar. Nisso, uma grande rede neural, chamada default mode network (rede em modo normal, em tradução livre) torna-se mais ativa. A taxa metabólica do cérebro não muda muito entre o repouso e a atividade mental focada – só uns 0,5%. Isso quer dizer que a cabeça está sempre ativa, mesmo quando não há nada no ambiente externo para processar. Minha hipótese é de que ficar ocioso permite nos tornarmos conscientes de mais operações cerebrais inconscientes – como nossas emoções, nossa identidade. Isso porque a mente não necessita processar informação externa e pode voltar a atenção para dentro.

Esse mecanismo é o mesmo de quando estamos dormindo?

Eu diria que há uma grande diferença entre o adormecimento e o ócio. Durante o sono profundo, estamos inconscientes e a atividade cerebral global é drasticamente diferente de se estar acordado; os sistemas sensórios são desligados nesse momento. Porém, é claro que sonhar acordado pode facilmente atingir os primeiros estágios do sono leve. E é aqui, acredito, que o cérebro começa a se embaralhar aleatoriamente e a processar toda a informação recém-encontrada, e essas coisas podem penetrar em nossa percepção – elas podem atravessar o limiar até a consciência. Mais uma vez, isso se deve ao fato de que nossas mentes estão liberadas de ter que enfrentar o “desafio do momento” do ambiente externo.

É comum sentir-se desconfortável com os próprios pensamentos quando se fica ocioso?

É verdade que estudos mostram que as pessoas ficam infelizes quando a mente vagueia. E isso é frequentemente usado como argumento para treinarmos nosso cérebro a ganhar maior controle de nossa atenção para que sejamos mais produtivos. Também é importante notar que a razão por que nossa mente vagueia é que o cérebro naturalmente alterna entre diferentes estados de atenção ao longo do dia. Assim, por exemplo, dificilmente poderíamos manter foco constante em algo por mais de uma hora, quando nossa rede em modo padrão interromperá nossa atenção. Além disso, nossa compulsão à multitarefa reduz a habilidade de suster atenção. Não se pode ter ambos: se você quer ser multitarefa, destruirá sua habilidade de manter o foco. Ainda assim, estamos convencidos de que nosso cérebro deve ser domado e induzido à produtividade. Eu discordo disso. Acho que cada um deve aprender a compreender o próprio ritmo. Quando a mente começa a divagar, perceba até onde ela vai! Entendo que isso pode ser desconfortável em um primeiro momento, porque você está abrindo mão do controle de seus pensamentos. Mas acredito que é aí que a inspiração verdadeiramente acontece. Quando permitimos que nosso cérebro realize aquilo que, naturalmente, ele de fato faz.

Então nunca se permitir um tempo de descanso pode ser prejudicial?

Colocar a cabeça constantemente num estado de vigilância é muito perigoso a longo prazo. Só como exemplo, uma recente revisão sistemática de todos os estudos clínicos sobre horas de trabalho e doença cardíaca coronária mostrou que as pessoas que trabalham mais horas têm 40% de risco extra de doença do coração. Isso é quase tão grave quanto fumar. Acho que quando realmente podemos ficar ociosos sem culpa ou vergonha, nosso cérebro pode processar toda a energia emocional – e a princípio isso pode parecer estranho. Mas é certamente benéfico para nossa saúde física e mental a longo prazo.

A psicanálise ou algum outro método pode nos ajudar a suportar essa dificuldade de ficar à toa?

Acho que a psicanálise é muito interessante, porque a neurociência está de alguma forma confirmando, na verdade, o que Freud pensou: nosso inconsciente está fazendo muito mais do que supomos. Mas minha perspectiva pessoal é que explorar ativamente nosso inconsciente pode realmente não ser necessário – pelo ócio, simplesmente, já estamos fazendo um tipo de psicanálise automática em nós mesmos. E talvez seja por isso que as pessoas não gostem disso.

Podemos dizer que esse é um caminho para o autoconhecimento?

Acredito, conforme mencionei, que as regiões do cérebro associadas à autorrepresentação estão extremamente ativas durante o repouso. Isso pode significar que nossa autorrepresentação pode se tornar mais aparente a nós no ócio porque, como partes da rede neural em modo normal, essa informação pode adentrar a consciência quando estamos à toa. Assim acredito, como [o poeta Rainer Maria] Rilke entendia, que o descanso é um meio de explorar a si mesmo e descobrir o que seu cérebro tem a dizer para a consciência sobre você.

O tédio costuma estar relacionado a não fazer nada. Você acha que isso é algo bom ou ruim?

Acho que é um espectro. Minha motivação na escrita do livro foi a percepção de que atualmente estamos sobrecarregados no trabalho e crescentemente em nossa vida privada. Tudo isso por conta da tecnologia móvel que nos força a estar disponível todo o tempo. As empresas esperam que as pessoas tornem-se ultraeficientes e produtivas integralmente, e ao mesmo tempo todo mundo quer ser inovador – e, como mencionei antes, não se pode ter ambos. Eficiência e inovação são forças opostas. Minha visão é a de que seres humanos são naturalmente criativos e inovadores. Acho que a ideia de eficiência é muito inumana, por isso é tão difícil fazer as pessoas tornarem-se assim, pelo menos no trabalho. Claro que humanos são extremamente eficientes em caminhar longas distâncias, segurar objetos e falar – isso é o que adquirimos com a evolução. Não somos porém tão bons assim em sentar diante de escrivaninhas por oito horas seguidas preenchendo planilhas ou sendo multitarefas, e de fato essas coisas podem ser prejudiciais. Há também o que eu chamaria de um certo prestígio associado a estar muito ocupado, como um modo de demonstrar seu status: “veja como sou ocupado! Sou uma pessoa muito importante e bem-sucedida.”

Como você lida com o tédio?

Acredito que já não temos mais tempo de sacar o que realmente nos interessa, e acho que estar enfastiado resulta de não ser curioso ou interessado nas coisas. Mas não dá para culpar a pessoa que trabalha o dia todo fazendo coisas sem significado – e chega em casa exausta -, por não ter outros interesses. Quando perder o emprego, ela com certeza ficará entediada. Eu raramente fico, mas ao mesmo tempo me interesso por tudo. Isso também pode ser um problema porque tenho dificuldade em focar. Se fico entediado, há tantas coisas que quero aprender que tento voltar àquelas que comecei, mas ainda não progredi.

Será que devíamos fazer mais coisas por diversão, em vez de focar tanto em nossa vida profissional?

Sim, concordo. Não estou certo em termos de atividade neural, mas certamente encorajaria todo mundo a buscar atividades que lhes são interessantes, prazerosas e recompensadoras. Acho que mesmo quando você trabalha em algo que lhe desperta paixão, você precisa de folgas! E eu ecoo a visão dos pensadores iluministas – passando por Marx e pelos anarquistas do século 19. Eles acreditavam que aquilo que você faz na vida – e não parte naturalmente de você – não lhe fará bem, e será estranho. O propósito da vida é apenas trabalhar? Acho que não. Mas a ninguém é dado falar sobre isso. Todos tentam parecer alguém superdevotado e ambicioso porque tememos ficar desempregados. Claro que existem pessoas apaixonadas, especialmente nas artes e nas ciências, que fazem o que fazem independentemente se são pagas ou não. Mas, mesmo nesses campos, a escassez dos recursos força o ser humano a se tornar carreirista. Um exemplo que cito no meu livro é o de Francis Crick, descobridor do DNA. Ele detestava o negócio administrativo e queria passar a vida como um eterno estudante graduado.

No seu livro, você diz que deveríamos mudar o modo como trabalhamos. Que tipo de mudança sugere?

Acredito que coisas como a desigualdade de riquezas e o tipo de economia de privilégios que temos impedem as pessoas de realmente descobrirem o que gostam de fazer – ou não fazer, conforme o caso. De uma perspectiva prática é muito difícil oferecer ideias, mas economistas como Keynes propuseram uma semana de trabalho de 15 horas. Oscar Wilde escreveu em A Alma do Homem sob o Socialismo que a meta da vida não é o labor, mas a diversão, e assumia que a tecnologia deveria trabalhar para a humanidade, em vez de o contrário. Mas eu proporia mesmo algo radical, como abolir as ocupações escravagistas e permitir às pessoas formarem cooperativas artesanais ou associações livres. Isso pode soar como se eu quisesse retornar a um estado revolucionário pré-industrial. Mas, ao contrário, pensadores como Nassim Taleb, que escreveu o Cisne Negro, acreditam que a escala e complexidade de nosso atual sistema o torna extremamente frágil, e que estamos sempre a um pequeno passo do colapso. Ele é contra a larga escala, e advoga por uma economia bem mais artesanal.

Como você lida com a mídia social, os celulares e tudo que ameaça seus momentos de relaxamento?

Sou péssimo nisso. Eu tuíto o tempo todo. Em parte para promover meu livro, mas também para receber notícias. E adoro brincar com os outros no Twitter. Eu cheguei a conhecer pessoas muito interessantes assim e fui convidado a dar palestras. Eu não uso demais o celular simplesmente porque estou sempre perdendo o aparelho. Mas percebo que, quando consigo me afastar dos equipamentos digitais por longos períodos, me sinto muito melhor.

Einstein dizia que a genialidade é feita de 10% de inspiração e 90% de transpiração. Como essa noção se alinha à sua visão do ócio e dos momentos de insight?

Bem, o Einstein é interessante porque dizia que, quando estava realmente tentando decifrar algo, ele ia dormir. Ele também sabia que o cérebro necessita estar disperso para encontrar soluções. Há um equilíbrio, certamente: você precisa do ócio para ser criativo, mas, assim que tem uma ideia, precisa focar para dar-lhe alguma existência fora da sua cabeça. Isso pode depender da atividade, mas, para coisas como resolver problemas complexos de matemática ou ciência, – ou mesmo no caso de Einstein, reimaginar completamente a estrutura do universo -, esses períodos de ócio disperso são essenciais.

Trabalhar menos é uma exceção destinada apenas a poucos?

Essa é uma questão muito relevante para mim, e não acho que seja possível tratar as consequências de saúde sem resolver as razões econômicas para a baixa remuneração. Concordo que as classes operárias não podem se permitir trabalhar menos. Mas eu também acho que o ócio deveria ser um direito, e certamente, se não tivermos extrema desigualdade, mais pessoas poderão se permitir ficar à toa. Tenho para mim que deveríamos reestruturar completamente nossas economias, mas essa é naturalmente uma questão a longo prazo. No curto prazo, como disse o sociólogo Immanuel Wallerstein, será que queremos uma economia baseada no espírito de Porto Alegre (o Fórum Social Mundial) ou de Davos (o Fórum Econômico Mundial)? Eu, pelo menos, acredito que o espírito do fórum de Porto Alegre é realmente muito mais humano e possibilitaria às pessoas a liberdade de trabalhar um pouco menos e descobrir quem elas são, ser sociáveis e mais criativas. Não estou certo sobre o que deveria vir antes: a luta por melhores salários ou por menos trabalho. Isso porque incrementar marginalmente seu salário parece sempre levar a muito mais trabalho em proporção à remuneração, já que as empresas precisam a todo momentos maximizar os lucros, sociais ou ambientais, a todo custo.

Existem argumentos além da inovação que poderiam convencer as empresas a estender o ócio à totalidade de seus funcionários?

Há centenas de estudos que mostram de uma maneira ou de outra que estar sob estresse e sobrecarga de trabalho é tão perigoso quanto coisas como fumar. Mas as empresas ignoram totalmente esse tipo de conhecimento porque é contrário a seus interesses. A ciência de por que as empresas deveriam estender o ócio a todo mundo é muito clara, se elas quiserem ler e compreender. Elas poderão não atingir suas metas arbitrárias de performance todo mês, mas os empregados estariam mais contentes e saudáveis, e a longo prazo mais produtivos.

Você tem dicas para quem quer trazer isso para a rotina?

Eu diria: quando você está trabalhando e nota que sua atenção começa a saltar da tela do computador, ou está numa reunião e perde o foco da apresentação de PowerPoint, em vez de lutar para recuperar a atenção, deixe sua mente ir e veja o que acontece. Ou, então, olhe pela janela por um instante. Sempre se pode encontrar lugares escondidos, talvez mesmo no banheiro, para divagar. Mas, de modo geral, um jeito de fazer isso seria simplesmente ter menos coisas para fazer e permitir-se dias inteiros sem ter absolutamente nada planejado.

E isso está de alguma forma relacionado à felicidade?

Essa é uma pergunta difícil. As pessoas supõem, e são doutrinadas a acreditar, que a felicidade virá quando tiverem muito dinheiro, uma carreira de prestígio ou conquistarem muito. Mas as pesquisas mostram que não é assim. Em outras palavras, as coisas que nos fariam felizes não fazem. O que realmente importa são os amigos, as conexões sociais, e algum tipo de propósito. Acho que a liberdade de estar ocioso é parte de estar contente. Quando tenho controle do meu tempo, aí é quando me sinto feliz.

Fonte: Rafael Rocha Daud para Revista Vida Simples - Foto: Nikiko para Pixabay

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